A presença profética da Vida Religiosa Consagrada junto às infâncias

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Irmão Edgar Genuino Nicodem.

Uma das prioridades do período 2022 – 2025 da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), do Eixo Discipulado, é “assegurar nossa presença profética e transformadora junto às infâncias e juventudes e às diversas formas de pobreza e vulnerabilidade nas periferias existenciais, sociais e geográficas”. Essa prioridade remete ao Horizonte Inspirador do triênio que nos convoca a “escutar e responder, com esperança, os gritos e os clamores de nosso tempo, para tornar visível o Reino de Deus”, “buscando ressignificar a Vida Religiosa Consagrada (VRC)”.

Entre os gritos e clamores de nosso tempo, inevitavelmente, está a realidade das infâncias e juventudes em situação de vulnerabilidade. Ressignificar a VRC consiste, entre outros aspectos, revisitar a nossa presença profética e o nosso compromisso transformador com aqueles que estão no coração de Deus para tornar visível o seu Reino. Instaurar esse compromisso transformador significa escutar, aproximar-se, estender a mão e caminhar lado a lado com as vítimas de uma sociedade cada vez mais desumanizadora.

Abordaremos neste artigo a temática das infâncias. Inicialmente contextualizaremos a situação das infâncias na sociedade e na Igreja. Num segundo momento analisaremos as reações da sociedade, Igreja e VRC diante das múltiplas evidências de abusos em relação às infâncias e suas nefastas consequências para o presente e o futuro das crianças e adolescentes. Entre essas reações destacaremos o direito à Educação, o Motu Proprio Vos Estis Lux Mundi, o Núcleo Lux Mundi e a Política de Proteção da CRB. E, para finalizar, vamos evidenciar algumas implicações para a presença profética da VRC na sociedade e na Igreja.

Uma tempestade perfeita

Num sábado à tarde, acompanhado por duas Ministras Extraordinárias da Eucaristia de uma das Paróquias da Zona Sul de Porto Alegre, onde habitualmente marco presença pastoral, visitamos a família de dona Alicia2. Uma das Ministras me disse: Irmão, precisamos visitar a família de dona Alicia porque na última semana foi encontrado o corpo de seu filho em avançado estado de decomposição. Marcos, o jovem assassinado, tinha 17 anos e era pai de uma menina de alguns meses. Estudava em um curso profissionalizante com o objetivo de qualificar-se para num futuro próximo entrar no mercado de trabalho e propiciar melhores condições de vida para a sua família.

De acordo com dona Alicia, Marcos foi sequestrado, torturado e assassinado por traficantes. A lei do tráfico é implacável. Foi encontrado quase um mês após o desaparecimento, enterrado até o pescoço, com evidentes sinais de maus tratos.

A senhora Alicia vive numa casa de 8 por 3 metros quadrados, numa das zonas periféricas de Porto Alegre. Em sua casa, além do marido vivem três de suas filhas e mais um irmão de Marcos. A filha maior tem três filhos (duas meninas e um menino), a segunda filha tem dois filhos (um menino e uma menina) e a filha mais nova tem uma menina. Além das três filhas e de Marcos, dona Alicia tem quatro filhos homens. O maior deles também foi morto pelo tráfico, o segundo vive na rua com a esposa. O terceiro vive com a família no litoral. O filho que antecede a Marcos também sofreu uma tentativa de assassinato. Perto da casa de dona Alicia funciona um baile Funk rodeado de densa vegetação. Antônio já havia sido amarrado numa árvore para o interrogatório. É costume fazer esses interrogatórios deixando cair pedras nos pés das vítimas. No dia em que visitamos dona Alicia, Antônio estava se recuperando no hospital. Antônio só está vivo porque no momento do interrogatório houve um intervalo no baile Funk e muita gente saiu do salão e acabaram presenciando a cena.

Se olharmos a tragédia de dona Alicia vemos que há seis crianças em situação de vulnerabilidade. Um dos poucos espaços alternativos que elas têm é a Escola Estadual onde estudam. O restante do tempo passam na casa ou na rua. Diante desse relato é necessário colocar uma questão básica – quantas crianças e adolescentes neste nosso país vivem situações de vulnerabilidade semelhantes?

Uma questão de direitos fundamentais e justiça social

Segundo dados do IBGE3, o Brasil tem uma população de 203.080.756 de habitantes, dos quais 53.759,457 têm menos de 18 anos. Mais da metade das crianças e adolescentes do país são afrodescendentes e um terço das 1.227.642 pessoas dos povos originários são crianças. As crianças e os adolescentes de nosso país têm seus direitos fundamentais assegurados pela Constituição. Contudo, a questão central é saber como o Estado e a sociedade estão comprometidos em atender essas necessidades básicas? Um ditado popular diz afirma que uma sociedade que não cuida das crianças e das pessoas idosas é decadente. Como qualificamos o nosso país?

Dados recentes, também do IBGE, revelam que entre 2019 e 2022 o trabalho infantil aumentou 7% no Brasil. Em termos práticos isso significa que são quase 2 milhões de crianças e adolescentes envolvidas em trabalho infantil. Desse total, quase dois quartos tinham entre 5 e 15 anos. Entre os adolescentes de 15 e 16 anos a carga horária chegava ao redor de 40 horas semanais. Entre as piores formas de trabalho infantil estavam 756 mil menores. Ou seja, atividades que envolviam riscos de acidentes e eram prejudiciais à saúde. O trabalho infantil é uma das piores chagas que afeta nossas crianças e adolescentes. Erradicá-lo, segundo a UNICEF, deve ser a prioridade das prioridades. Não é possível continuar hipotecando o futuro de nossas crianças e adolescentes.

Algumas informações complementares sobre essa triste realidade do trabalho infantil. Segundo dados de 2019, do total de crianças e adolescentes envolvidos em trabalho infantil, 66.4% são meninos e 33,6% são meninas. Praticamente o dobro de meninos do que de meninas. Desse total 75,8% em trabalho infantil urbano e 24,2% em trabalho infantil rural. Outro fator relevante é a idade das vítimas do trabalho infantil: a) 53,7% entre 16 e 17 anos; b) 25,0% entre 14 e 15 anos; c) 21,3% entre 5 e 13 anos. Dos quais 66,3% são pretos ou pardos4, 33% são brancos e 12,1% não estudam5.

Segundo o Diretor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no país, Vinícius Pinheiro, a erradicação do Trabalho Infantil até 2025, meta das Nações Unidas, infelizmente não será alcançada no Brasil. O mais urgente, segundo ele, é retirar as crianças e os adolescentes do mercado de trabalho e colocá-las em espaços educativos (escolas) e lúdicos. Criança tem que estudar, brincar e não trabalhar. Uma educação de qualidade, acessível a todos (as), será fundamental para mudar esse terrível cenário.

Uma das faces mais cruéis da violência

Uma das faces mais trágicas das violações de Direitos no Brasil, segundo a UNICEF6, são os homicídios de adolescentes. A cada hora, um adolescente é assassinado no país. Em sua grande maioria essas vítimas são meninos, negros e moradores de favelas. O Brasil tem uma das legislações mais avançadas no que diz respeito à proteção da infância e adolescência. Contudo, as políticas públicas ainda estão longe de combater e superar de modo eficaz as desigualdades geográficas, sociais e étnicas do país e poder celebrar a riqueza da diversidade.

Ainda segundo a UNICEF, entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de até 19 anos foram mortos de forma violenta no Brasil – uma média de 7 mil por ano. Para mudar esse cenário, é preciso que o País enfrente a normalização das violências, promova a capacitação de profissionais que trabalham com crianças e adolescentes, engaje as polícias em ações de prevenção das violências, garanta a permanência das crianças e adolescentes nas escolas, promova a sensibilização de meninos e meninas sobre seus direitos, garanta a responsabilização dos perpetradores de violências, e invista no monitoramento e geração de evidências.

Denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes

Apesar dos avanços, sabemos que as denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes sempre são situações complexas e que ainda há um longo percurso pela frente. Segundo o Ministério da Saúde, entre 2015 e 2021 foram notificados 202.948 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. São praticamente 80 casos por dia. Esses são os casos notificados e quantos serão os não notificados? Persiste o grave problema da subnotificação.

Segundo Boletim divulgado em 2021, por ocasião do Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescente, tivemos 83.571 (41,2%) dos casos de violência foram contra crianças de 0 a 9 anos e 119.377 (58,8%) foram praticados contra adolescentes de 10 a 18 anos. A maioria das ocorrências, tanto com crianças quanto com adolescentes, acontece dentro de casa e os agressores são pessoas do convívio das vítimas, geralmente familiares. Outro dado relevante é que a maioria das violências é praticada mais de uma vez.

Como fazer denúncias

É inadmissível que a sociedade continue condescendente com as situações de abusos a crianças, adolescentes e adultos em situação de vulnerabilidade. Conhecer os canais para fazer as denúncias pode ser um diferencial importante. Felizmente temos em nosso país instituições, particularmente ligadas à Justiça, que funcionam bem. Segue uma relação de canais onde se pode apresentar denúncias.

Disque 100 – É o número da Secretaria de Direitos Humanos que recebe denúncias de forma rápida e anônima e encaminha o assunto aos órgãos competentes no município de origem da criança ou adolescente. Pode ser discado de qualquer parte do Brasil. A ligação é gratuita, anônima e com atendimento 24 horas, todos os dias da semana.

Aplicativo Proteja Brasil – Através do aplicativo Proteja Brasil qualquer cidadão pode encaminhar denúncias de violações de direitos humanos. O aplicativo pode ser baixado diretamente no celular. Disponível em português, inglês e espanhol, funciona em celulares e tablets e está disponível para os sistemas operacionais iOS ou Android. Para começar a utilizar o aplicativo, basta: • Fazer o download do app compatível com o seu celular. • Permitir que o app acesse a sua localização. • Preencher um formulário com dados da vítima, dados do agressor e uma descrição da violência perpetrada. • Sua denúncia é registrada de uma forma totalmente sigilosa e segura.

Com apenas alguns cliques, o usuário consegue apresentar sua queixa à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos de maneira fácil, rápida, anônima e segura.

Disque 190 – É o número da Polícia Militar que deve ser acionado em casos de necessidade imediata ou socorro rápido. O 190 recebe ligações de forma gratuita em todo o território nacional.

Conselho Tutelar de sua Cidade – O Conselho Tutelar é um dos órgãos de proteção e que também recebe denúncias de violações dos direitos das crianças e adolescentes.

Direito à Educação

O direito à educação é reconhecido tanto internacionalmente quanto em nosso país. Em nível internacional podemos mencionar a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, da UNICEF, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989. Ela estabeleceu a Educação Básica como um dos direitos inalienáveis das crianças, impondo padrões mínimos a seguir.

O direito à Educação foi reconhecido no Brasil pela Constituição de 1988. O artigo 6º da Constituição enumera a educação entre os direitos sociais. Já o artigo 205 afirma que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Como um direito constitucionalmente assegurado a todos, inerente à dignidade humana, é dever do Estado prover condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

Outro documento importante no direito à Educação é o Estatuto da Criança do Adolescente (ECA), Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. O ECA regulamenta a artigo 227 da Constituição Federal que define as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento, que demandam proteção integral e prioritária por parte da família, sociedade e do Estado. O ECA também reconhece a diversidade de necessidades e realidades das crianças e adolescentes, garantindo o acesso à educação nas diferentes modalidades.

Inegavelmente temos uma excelente legislação referente ao direito à educação. Contudo, o que acontece na prática? Por que existe esta imensa distância entre o direito e o acesso à educação? É importante analisar os porquês dessa situação e como ela pode ser superada, onde as políticas públicas possuem um papel preponderante.

O Brasil tem 26.515.601 matrículas no Ensino Fundamental e 7.770.557 no Ensino Médio. Um dos direitos fundamentais de todas as criança e adolescentes é o acesso à educação. Conforme a Organização para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil avançou em número de matrículas e melhorou o nível de escolaridade da população nas últimas décadas. É a primeira vez que mais da metade da população com mais de 25 anos completou o Ensino Fundamental. O analfabetismo caiu de 6,1% para 5,6%. Segundo o relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) conseguimos avançar no acesso à educação básica e até em relação a índices de desempenho, mas as desigualdades persistem. Essas desigualdades são multidimensionais, se dão por nível socioeconômico, mas também por raça, gênero e localização geográfica. A desigualdade é o problema que grita em todas as partes deste país. Entre pretos 5 e pardos, 7,4% são analfabetos, mais que o dobro da população branca. O abandono escolar também é um indicador dessa desigualdade. Sete em cada 10 jovens que não completaram o Ensino Médio são pretos ou pardos.

Paulo Freire, em uma de suas tantas considerações sobre a educação, afirma: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Transparece nessa afirmação de Freire a importância da educação como elemento fundamental para reduzir a inequidade social e para que a educação se constitua em diferencial na vida democrática, econômica e social do país. Quais são as barreiras que impedem o acesso à educação de qualidade?

As barreiras que dificultam o acesso à educação, um direito social, podem resultar em aumento do desemprego, criminalidade e discriminação. Sem acesso à educação de qualidade aumentam as dificuldades de inserção no mercado de trabalho e menores chances de conquistar vagas em Universidades e concursos públicos. Num país, como o nosso, onde a Educação não é prioridade, a redução da inequidade social fica comprometida, realidade que afetará futuras gerações. Para muitas crianças e adolescentes de zonas rurais e periferias ir à escola é um trabalho hercúleo. A própria situação familiar pode ser um desafio quase instransponível. No esforço pela sobrevivência muitas crianças e adolescentes acabam trabalhando, contribuindo com a renda familiar. O trabalho infantil ainda continua sendo uma triste realidade em nosso país.

Diante de um quadro tão problemático e desafiador a missão profética da Vida Religiosa Consagrada mantém todo a sua atualidade e urgência. Como os nossos Fundadores e Fundadoras somos chamados a sermos criativos na construção de alternativas para que mais e mais crianças, adolescentes e jovens possam ter acesso à educação de qualidade. Além das obras que habitualmente animamos será fundamental, com outras instituições, lutar por políticas públicas que possibilitem o acesso de todos a uma educação de qualidade, como direito social consagrado em nossa Constituição

Quando um membro sofre todos sofrem

O fenômeno dos abusos marcou tristemente a Igreja nos últimos anos. O que mais suscitou notícias, mesmo em âmbito internacional, foi o envolvimento de membros da hierarquia, sacerdotes, religiosos e religiosas. O modo como a hierarquia e os superiores maiores fizeram a gestão das denúncias em muitos casos foi problemático. Podemos aqui mencionar os casos de encobrimento e as transferências, que nada mais fizeram do que transferir o problema.

Quem sabe é importante lembrar entre as reações, a palavras do Cardeal Ratzinger na Via-Sacra da sexta-feira de 2005: quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele! Quanta soberba, quanta autossuficiência!… A traição dos discípulos, a recepção indigna do seu Corpo e 6 do seu Sangue é certamente o maior sofrimento do Redentor, o que lhe trespassa o coração”7.

O Papa Francisco tem sido incansável em enfrentar a questão dos abusos. Aqui vamos mencionar duas suas iniciativas. Em primeiro lugar a sua Carta ao Povo de Deus8, de 20 de agosto de 2018. E em segundo lugar, o Motu Proprio Vos Estis Lux Mundi.

Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus

No dia 20 de agosto de 2018, o Papa Francisco dirigiu uma Carta ao Povo de Deus onde afirma que “é imperativo que nós, como Igreja, possamos reconhecer e condenar, com dor e vergonha, as atrocidades cometidas por pessoas consagradas, clérigos, e inclusive por todos aqueles que tinham a missão de assistir e cuidar dos mais vulneráveis”. O olhar do Sumo Pontífice se dirige particularmente às vítimas de abuso sexual, de poder e de consciência. A dor das vítimas, afirma Francisco, “é um gemido que clama ao céu, que alcança a alma e que, por muito tempo, foi ignorado, emudecido ou silenciado”. Olhando para o passado, recorda o Sumo Pontífice, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado. Olhando para o futuro, nunca será pouco tudo o que for feito para gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas.

No proêmio do Motu Proprio, Vos Estis Lux Mundi, que veremos a seguir, o Papa Francisco afirma: “Os crimes de abuso sexual ofendem Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a comunidade dos fiéis. Para que tais fenômenos, em todas as suas formas, não aconteçam mais, é necessária uma conversão contínua e profunda dos corações, atestada por ações concretas e eficazes que envolvam todos os membros da Igreja, de modo que a santidade pessoal e o empenho moral possam concorrer para fomentar a plena credibilidade do anúncio evangélico e a eficácia da missão da Igreja”9.

Motu Proprio – Vos Estis Lux Mundi

Diante de tão graves denúncias, com ampla repercussão internacional, a Igreja não poderia ficar indiferente. O Papa Francisco tem trabalhado arduamente desencadeando inúmeras iniciativas, entre as quais é necessário destacar, o Motu Proprio – Vos Estis Lux Mundi. Essa Carta Apostólica não somente deixa claro o posicionamento da Igreja, mas também estabelece uma série de procedimentos para fazer frente aos crimes de abuso sexual que ofendem Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às pessoas e lesam a comunidade de fiéis, segundo o Papa Francisco.

Vamos destacar alguns procedimentos requeridos pelo Motu Proprio – Vos Estis Lux Mundi: 1º – Todas as Dioceses devem estabelecer sistemas estáveis e facilmente acessíveis ao público para apresentar denúncias. 2º – Todos os clérigos, religiosos e religiosas devem informar às autoridades eclesiásticas sobre abusos que tenham conhecimento. 3º – São estabelecidos prazos dentro dos quais devem ser concluídas as investigações. 4º – O Motu Proprio também enfatiza o cuidado com as pessoas que foram ofendidas e a importância do acolhimento, escuta e acompanhamento, oferecendo-lhes assistência espiritual e terapêutica.

Para que tais lamentáveis situações não continuem acontecendo ou se repitam, insiste o Motu Proprio, é necessária uma conversão contínua e profunda dos corações, transformada em ações concretas e eficazes que envolvam a todos na Igreja. A credibilidade do anúncio do Evangelho e a eficácia da missão da Igreja dependem, entre outros fatores, dessa renovada ação em favor das pessoas em situação de vulnerabilidade. O Papa Francisco assegura que embora muito já tenha sido feito, precisamos continuar a aprender das lições amargas do passado a fim de olhar com esperança para o futuro.

Núcleo Lux Mundi

Uma das iniciativas para fazer frente ao triste fenômeno dos abusos em nosso país foi a criação do Núcleo Lux Mundi. A finalidade desse Núcleo é colocar em prática as propostas do Motu Proprio “Vos estis Lux Mundi”. Isso se fará por meio de uma série de iniciativas considerando crianças, adolescentes e pessoas em situação de vulnerabilidade. Particularmente relevantes são as iniciativas de formação.

Uma das tarefas importantes do Núcleo Lux Mundi é ajudar as Dioceses e Congregações Religiosas ou Províncias a elaborar o seu Protocolo ou Política de Proteção. Ter um Protocolo ou Política de Proteção é fundamental para um posicionamento institucional, mas também para ter procedimentos claros em caso de eventuais denúncias. Outro aspecto importante é efetivamente instaurar uma cultura de proteção institucional caracterizada pela transparência.

Tem-se observado certa lentidão das Congregações Religiosas em colocar em prática as determinações do Motu Próprio Vos estis Lux Mundi. Parece que ainda falta despertar para as nefastas consequências dos diferentes tipos de abusos perpetrados. Às vezes tem-se a impressão de que pressões externas são necessárias para mover algumas instituições. É o caso, por exemplo, da exigência de um Protocolo para receber ajudas de organismos internacionais. Contudo, é fundamental que cada congregação ou Província tenha a sua Política de Proteção ou Protocolo.

Política de Proteção da CRB

Desde 1º de agosto de 2021 a CRB tem a sua Política de Proteção a crianças, adolescentes e pessoas em situação de vulnerabilidade. Ao assumir a proposta do Motu Proprio do Papa Francisco, a CRB considera inadmissível qualquer tipo de abuso contra pessoas em situação de vulnerabilidade. Trata-se na verdade de uma política de prevenção 8 e de proteção que tem a finalidade de promover uma cultura de prevenção. A Política de Proteção está disponível na página da CRB10.

Desde a aprovação da Política de Proteção da Nacional a Comissão de Proteção pôs-se a trabalhar. Além dos momentos formativos ela tem a missão de acolher e encaminhar as denúncias recebidas. Diversas denúncias foram recebidas e encaminhadas. Foram momentos importantes de escuta, acolhida e encaminhamento de situações. O tema da proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade continua sendo um importante desafio para a missão da CRB na animação da VRC do país. O caráter dinâmico do Política de Proteção deve ser ressaltado. Ela precisa ser constantemente avaliada, atualizada e assumida pela CRB, congregações e ordens religiosas, dado que está em jogo a sua credibilidade e seu testemunho profético11.

Presença profética da VRC com as crianças e adolescentes

Após esse percurso relativamente longo sobre a situação das crianças e adolescentes em nossa sociedade e Igreja, chegou o momento de descortinar alguns aspectos de como a presença da VRC pode ser profética e transformadora nesse contexto. Considerando a Vida Religiosa Apostólica é difícil identificar uma congregação ou ordem religiosa que não tenha presença pastoral ou educativa significativa junto a crianças e adolescentes. Contudo, em que consistiria uma presença profética e transformadora junto a esse contingente tão significativo de nossa população?

Muito se tem escrito sobre a dimensão profética da VRC, e não é nossa intenção sintetizar a riqueza e a atualidade dessas reflexões. Simplesmente queremos relacionar essa parte de nosso escrito com o horizonte e o eixo da missionariedade do atual triênio (2022 – 2025) da CRB. Basicamente como podemos responder, com esperança, aos gritos e clamores das infâncias?

Como pano de fundo para as nossas considerações vamos utilizar a perspectiva da imaginação profética de Walter Brueggemann. Acreditamos que essa perspectiva traçada há décadas permanece atual e continua sendo inspiradora. A vocação do profeta, segundo Brueggemann, é manter vivo o ministério da imaginação propondo futuros alternativos, diferentes daquele único pensável pela política e estruturas vigentes (Brueggemann,1983, p.51-52). Ao longo da obra A imaginação profética, Brueggemann contrapõe de forma sistemática a capacidade de imaginar alternativas diferentes, encontradas, por exemplo, no Êxodo e em profetas como Jeremias e o Dêutero-Isaías, com a monarquia institucional na qual tudo está previsto, planejado e não há espaço para o novo. O importante é encontrar brechas por onde o novo pode entrar e transformar a realidade.

A esperança é a principal expressão profética segundo Brueggemann (1983, p. 81). E como tal, a esperança é inoportuna, invasora e desconcertante mostrando que a realidade desumanizante não tem a última palavra. É uma força disruptiva diante do “status quo” que renova e ativa antigas promessas e nada pode detê-la. O que era estéril tornase fértil: Sara (Gn 11,30); Rebeca (Gn 25,21); Raquel (Gn 29,21); e Isabel (Lc 1,7).

A esperança é posterior à aflição e quem a expressa publicamente necessita conhecer e participar da angústia que torna possível a esperança (Brueggemann, 1983, p. 94). Sem uma participação efetiva com os que padecem aflições não se pode cantar cânticos novos. Sem essa participação os cânticos poderão simplesmente ser manifestações ruidosas ou até falsas. Ou em outras palavras, quanto rito, cerimônia ou pano para estar em perfeita sintonia com o “status quo”.

Vamos passar à análise de como se dá a relação entre aflição e esperança nos relatos do nascimento de Jesus, segundo Brueggemann. Em Lucas podemos reconhecer a solidariedade com os pobres pastores e, em Mateus, o conflito com os poderes estabelecidos. Em Lucas a revelação aos pastores anuncia uma novidade que vai acabar com algo que parecia eterno. Haverá uma inversão profunda da lógica reinante (Lc 1,51.53). Não será uma mudança indolor porque o rei não deixará o poder escapar sem reagir violentamente. Não vai morrer sozinho. Vai matar e aniquilar. Enquanto Lucas celebra a novidade nascente, Mateus coloca no centro a dor e aflição provocada pela grande transformação. Em Mateus, vemos os últimos estertores de um rei que termina (Mt 2,16-23) e a aflição de Raquel que “chora seus filhos e não quer ser consolada, porque já estão mortos” (Mt 2,18b). Mateus revela simultaneamente o fim de um período de matança e morte, e o surgimento de uma nova e transformadora alternativa com o Nazareno (Mt 2,23). À aflição gerada pela perseguição, matança e exílio, segue-se um novo horizonte de esperança com o retorno de Jesus, Maria e José à cidade de Nazaré.

A Vida Religiosa Consagrada é uma pequena parcela do Povo de Deus. Faz parte da vida e missão da Igreja. Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi, afirma que:

Graças à sua consagração religiosa, eles são por excelência voluntários e livres para deixar tudo e ir anunciar o Evangelho até as extremidades da terra. Eles são empreendedores, e o seu apostolado é muitas vezes marcado por uma originalidade e por uma feição própria, que lhes granjeiam forçosamente admiração. Depois, eles são generosos: encontram-se com frequência nos postos de vanguarda da missão (Evangelii Nuntiandi, 69).

Segundo o Paulo VI, os religiosos (as) são convocados (as) a assumir o seu apostolado com originalidade e feição própria, colocando-se com generosidade nos postos de vanguarda da missão. Ao considerar a situação das infâncias supramencionada, é fundamental que a VRC esteja na vanguarda da defesa e promoção da dignidade e dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes. Destacaremos algumas perspectivas que nos podem iluminar nesta caminhada.

1. Walter Brueggemann destaca a importância da imaginação profética diante de situações que parecem imutáveis. Mais do que administrar o instituído, é indispensável imaginar novas alternativas e configurar novos horizontes para transformar a realidade. É preciso estar aí onde são mais necessárias a imaginação e a criatividade, onde o risco é maior para sacudir a perda do dinamismo profético (Sobrino: 1984, p.335). Superar o triste quadro que afeta nossas crianças e adolescentes requer muita imaginação, criatividade e a superação da inércia que afeta muitas vezes as instituições da Igreja e da Vida Religiosa Consagrada. 2. Em sua homilia, por ocasião da visita a Lampedusa, o Papa Francisco denuncia “a cultura do bem-estar que leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença”. Há algumas situações, segundo Francisco, que são como um espinho no coração que faz doer. Brueggemann afirma que sem uma participação efetiva nas aflições dos que padecem não podemos cantar cânticos novos. Até nossas bem-intencionadas celebrações podem parecer manifestações ruidosas e vazias. Qual é o impacto que a dor e sofrimento de tantas crianças e adolescentes têm em nosso coração? Que sentido tem para o nosso cotidiano comunitário e para nossas instituições? Como estamos conseguindo superar a globalização da indiferença? 3. A esperança, como vimos, é uma força disruptiva que não permite que sejamos indiferentes ou coniventes com o “status quo”. Nossos fundadores (as) souberam olhar a realidade com os olhos de Deus e criar novas alternativas. Hoje essa missão é nossa. Não podemos abandonar, ser indiferentes ou fracassar com aqueles que Deus nos confia.

O evangelho de Mateus (Mt 25,31-46) mostra que qualquer pequeno gesto tem valor inestimável. Por isso, sigamos adiante com fé e esperança. As crianças e os adolescentes agradecem. Quem sabe, não somos mais do que “uma gota d’água num mar sem fim”12, mas com a nossa presença solidária podemos fazer toda diferença na vida de crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade.

Para dialogar em comunidade

1. Como a realidade das crianças e adolescentes impacta em nossa vida e missão? 2. Quais são as iniciativas de caráter profético envolvendo crianças e adolescentes das quais a nossa Congregação ou Província participa? 3. Como Congregação ou Província conhecemos a Política de Proteção da CRB? 4. Temos em nossa Congregação ou Província uma Política de Proteção ou Protocolo?

5. Conhecemos os canais de denúncia dos abusos de crianças, adolescentes e pessoas em situação de vulnerabilidade?

 

Referências

BRUEGGEMANN, Walter. La imaginación profética. Santander: Sal Terrae, 1986.

CRB NACIONAL. Política de Proteção a Crianças, Adolescentes e Pessoas em Situação de Vulnerabilidade. Disponível em: https://crbnacional.org.br/wp-content/uploads/2023/03/POLITICA-DE-PROTECAO-CRB-NACIONAL.

FRANCISCO, Papa. Carta Apostólica sob forma de Moto Proprio. Roma, 2023. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/motu_proprio/documents/20230325-motu-proprio-vos-estis-lux-mundi.

PAULO VI, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. Roma, 1975, disponível em: https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/apost_exhortations/documents/hf_p-vi_exh_19751208_evangelii-nuntiandi. SOBRINO, Jon. Resurrección de la verdadera Iglesia: los pobres lugar teológico de la eclesiología. Santander: Sal Terrae, 1984.

 

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