“‘Um membro sofre? Todos os outros membros sofrem com ele’ (1Cor 12,26). Estas palavras de São Paulo ressoam com força no meu coração ao constatar mais uma vez o sofrimento vivido por muitos menores por causa de abusos sexuais, de poder e de consciência cometidos por um número notável de clérigos e pessoas consagradas. Um crime que gera profundas feridas de dor e impotência, em primeiro lugar nas vítimas, mas também em suas famílias e na inteira comunidade, tanto entre os crentes como entre os não-crentes. Olhando para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado. Olhando para o futuro, nunca será pouco tudo o que for feito para gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas. A dor das vítimas e das suas famílias é também a nossa dor, por isso é preciso reafirmar mais uma vez o nosso compromisso em garantir a proteção de menores e de adultos em situações de vulnerabilidade.
– “Um membro sofre…”: pela primeira vez, um documento magisterial sobre o tema dos abusos começava abordando o sofrimento das vítimas. Não o “pecado contra o sexto mandamento”, nem o “delito contra o sacramento” ou “contra a moral” se colocavam como ponto de partida da reflexão, mas sim o sofrimento das vítimas.
– “… todos sofrem com ele”: também pela primeira vez, se reconhece que o sofrimento não pertence somente à vítima, mas a todos os que compõem seu entorno. Família, amigos, comunidade, comunidade de fé, inclusive aqueles que não expressam fé religiosa… todos são atingidos e todos participam do sofrimento, merecendo da Igreja acolhida e atenção à sua dor.
– “… abusos sexuais, de poder e de consciência...”: aqui se formula a tríade que passaria a fazer parte da abordagem eclesial do tema. As terminologias canônicas (delito, solicitação em confissão etc.) dão lugar à nomeação civil do crime: abuso. E o abuso passa a ser compreendido em sentido amplo: sexual, como já há muito se compreendia, mas também de consciência e de poder. Mais adiante, se afirmará que o abuso sexual frequentemente acontece quando precedido de abusos de consciência e de poder.
– “…cometidos por um número notável de clérigos e pessoas consagradas”: os autores do abuso não são mais identificados apenas como “clérigos” / ministros ordenados, mas também como “pessoas consagradas”, indicando que, na vida religiosa consagrada, os autores são tanto homens como mulheres. E note-se que o texto reconhece que os autores são “um número notável” e não apenas a exceção que tantas vezes se tentou encobrir com o argumento de “número pequeno”.
– “… que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas”: há o reconhecimento público e magisterial de que, ao lado do crime do abuso, clérigos e religiosos/as também praticaram o ocultamento, que terminava por perpetuar as práticas abusivas.
– “… proteção de menores e de adultos em situações de vulnerabilidade”: também aqui se assume o binômio que se consolidaria na tratativa eclesial do tema do abuso. Assim, ao lado do cuidado de crianças e adolescentes, sempre se enunciaria também o cuidado com adultos em situações de vulnerabilidade, ou adultos vulneráveis.
– “… pedir perdão e procurar reparar o dano causado”: o papa coloca lado a lado as duas necessidades que nascem do reconhecimento do crime praticado, ou seja, a necessidade de pedir perdão e a necessidade de reparar o dano. Ou seja, o reconhecimento do crime que conduz ao necessário pedido de perdão só se completa quando, além disso, se compromete à reparação do dano à vítima. Essa “reparação do dano” seria assumida pela reforma do Código de Direito Canônico, em 2021. Ainda assim, como aos poucos veremos, ainda faltam critérios claros de delimitação dessa reparação.
“Nestes últimos dias, um relatório foi divulgado detalhando aquilo que vivenciaram pelo menos 1.000 sobreviventes, vítimas de abuso sexual, de poder e de consciência, nas mãos de sacerdotes por aproximadamente setenta anos”.
Outra novidade é se referir às vítimas como “sobreviventes”. E há uma diferença notável: se “vítima” diz da condição do abusado no momento do abuso, na qual foi sujeitado às práticas abusivas do perpetrador, “sobrevivente” diz de alguém que, passado o abuso e despertada a consciência para sua gravidade, principia um caminho de superação e sanação das dores.
“As feridas ‘nunca prescrevem’. A dor dessas vítimas é um gemido que clama ao céu, que alcança a alma e que, por muito tempo, foi ignorado, emudecido ou silenciado. Mas seu grito foi mais forte do que todas as medidas que tentaram silenciá-lo ou, inclusive, que procuraram resolvê-lo com decisões que aumentaram a gravidade caindo na cumplicidade”.
“Com vergonha e arrependimento, como comunidade eclesial, assumimos que não soubemos estar onde deveríamos estar, que não agimos a tempo para reconhecer a dimensão e a gravidade do dano que estava sendo causado em tantas vidas. Nós negligenciamos e abandonamos os pequenos”.
“É impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os membros do Povo de Deus. Além disso, toda vez que tentamos suplantar, silenciar, ignorar, reduzir em pequenas elites o povo de Deus, construímos comunidades, planos, ênfases teológicas, espiritualidades e estruturas sem raízes, sem memória, sem rostos, sem corpos, enfim, sem vidas. Isto se manifesta claramente num modo anômalo de entender a autoridade na Igreja – tão comum em muitas comunidades onde ocorreram as condutas de abuso sexual, de poder e de consciência – como é o clericalismo, aquela ‘atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas tende também a diminuir e a subestimar a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo’. O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma ruptura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo”.
“Portanto, a única maneira de respondermos a esse mal que prejudicou tantas vidas é vivê-lo como uma tarefa que nos envolve e corresponde a todos como Povo de Deus. Essa consciência de nos sentirmos parte de um povo e de uma história comum nos permitirá reconhecer nossos pecados e erros do passado com uma abertura penitencial capaz de se deixar renovar a partir de dentro. Tudo o que for feito para erradicar a cultura do abuso em nossas comunidades, sem a participação ativa de todos os membros da Igreja, não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma transformação saudável e realista. A dimensão penitencial do jejum e da oração ajudar-nos-á, como Povo de Deus, a nos colocar diante do Senhor e de nossos irmãos feridos, como pecadores que imploram o perdão e a graça da vergonha e da conversão e, assim, podermos elaborar ações que criem dinâmicas em sintonia com o Evangelho”.
A ideia interessante (e original desta Carta) é a proposta de um “tom penitencial” ou “de conversão” para a tratativa do tema dos abusos. Se a “redução do Povo de Deus a pequenas elites” cria e perpetua os abusos, então “a única maneira de respondermos a esse mal […] é vivê-lo como uma tarefa que nos envolve e corresponde a todos como Povo de Deus”. Como? “elaborando ações que criem dinâmicas em sintonia com o Evangelho”. Recolocar no seu lugar a categoria “Povo de Deus”, incluindo nela todas as pessoas e superando as distorções do poder e de uma compreensão equivocada da autoridade (clericalismo); recolocar no seu lugar o evangelho, como referência capaz de orientar inclusive uma revisão da cultura institucional da Igreja – parece ser essa a resposta do Papa Francisco ao tema dos abusos. Como a questão toma toda a Igreja, sua resposta também deve tomar. Razão pela qual não existem respostas fáceis, soluções eficazes a partir de meras intervenções pontuais. O problema dos abusos é também um problema eclesiológico. E somente se pode saná-lo satisfatoriamente com propostas que toquem toda a Igreja, começando pela compreensão que ela tem de si mesma.




